This great collection of essays on cinematic space, edited by Filipa and Iván, was published this month by Routledge. My chapter is called “The Urban and the Domestic: Spaces of American Film Noir”. My congrats and thanks to both editors.
Neste Tempo
O meu “Neste Tempo” é o mais recente texto do dossier “Godard, Livro Aberto”, publicado em boa hora pelo À Pala de Walsh. Agradeço o convite do Luís Mendonça para participar neste projecto editorial a propósito da estreia de O Livro de Imagem (Le livre d’image, 2018). Escrevi um pouco sobre esse filme, mas dedico mais espaço a Eu Vos Saúdo, Maria (Je vous salue, Marie, 1985) neste artigo sobre a relação entre o cinema, a política, e a religião nos filmes de Jean-Luc Godard. Parto das reflexões do filósofo americano Stanley Cavell. São duas obras que se refazem como labirintos em expansão. O pequeno ensaio pode ser lido aqui.
O Movimento Estancado
A consciência activa da verdade material do filme passa, em muitos casos, pelo trabalho da imagem e do som para que escapem ao logro automático das evidências. No caso de Michelangelo Antonioni, um filme como O Eclipse (L’eclisse, 1962) mostra, precisamente, os poderes concretos do cinema como composição e duração. Os enquadramentos demarcam os corpos no interior das relações espaciais e fazem sobressair o vazio — o mundo como lugar cheio de presenças, mas desabitado. Na cena passada na frenética Bolsa de Roma, é acentuado o peso maciço das colunas. Quando tudo pára para homenagear um colega que morreu de ataque cardíaco, a imagem fixa, suspensa, manifesta a fixidez e a suspensão das personagens, que se movem sem saírem da prisão em que se encontram. É isso que esse momento dá a ver ao estancar o movimento convulso.
Imagem-Fluxo
Filmar a cidade é captar uma certa ideia de cidade. A Paris de Walter Benjamin é o resultado de uma análise das relações entre a subjectividade e a escala urbana, influenciada pelas teorias psicanalíticas, de Sigmund Freud a Carl Jung. A cidade é um espaço de relações. Nasce no acto de comunicação, na interdependência de pessoas e actividades. A sua composição dinâmica gera imagens que manifestam a estrutura social. O espaço urbano, como qualquer ser vivo, configura-se pelos impulsos interiores e exteriores que determinam as suas articulações, os seus pontos sensíveis, a singularidade dos seus locais na sua relação com a totalidade.
Hong Kong tem crescido organicamente, num processo de intensificação e saturação. As opções formais e expressivas de Kar-wai Wong permitem o registo compreensivo desta realidade: um fluxo incessante onde as pessoas se cruzam à velocidade da luz. A cidade devora as personagens. Elas atravessam o peso das imensas construções sem fim como se já não tivessem corpo. É o que vê no último plano de Anjos Caídos (Duo luo tian shi, 1995).
Espaço Negativo
No belo texto que escreveu para o À pala de Walsh sobre Aquaman (2018), o Luís Mendonça fala sobre o enaltecimento do “espaço negativo”. Para quem segue com interesse a obra de James Wan como cineasta, parece-me que o grande desafio crítico é entender a unidade entre os seus filmes de terror e os seus filmes de acção. Nesse sentido, Aquaman tem muito em comum com Insidious: Capítulo 2 (Insidious: Chapter 2, 2013) porque enfrenta uma questão semelhante: como representar um campo desconhecido, nesse caso a esfera dos espíritos? Em ambos os casos, para que o desconhecido se torne conhecido, visível, é necessário ajustar a visão. Os filmes optam por um desdobramento do mundo no espaço (em Aquaman) e no tempo (em Insidious: Capítulo 2) em que o espaço negativo é uma marca de imensidão, maravilhosa ou tenebrosa.
Um Buraco Negro
Como pode o cinema exprimir o indizível, aquilo para o qual as palavras não chegam? Em Sonhos de Akira Kurosawa (Yume, 1990), há um túnel que se transfigura num buraco negro de medos. É como se ao carácter indizível do que está aquém ou além da linguagem correspondesse a dimensão incomensurável do espaço.
Portuguese Women Directors
Portuguese Women Directors is a great research project hosted by the Institute of Social Sciences - University of Lisbon, financed by Calouste Gulbenkian Foundation and coordinated by Mariana Liz (ICS-ULisbon) and Hilary Owen (University of Oxford/University of Manchester), with Ana Cabral Martins’s assistance. Check out the website.
Serviço Público ao Cinema Português
Ainda não vi Parque Mayer (2018). Estreia amanhã. É verdade que o “making of” que hoje passou na televisão, em horário nobre, foi produzido pela MGN Filmes como peça promocional. Mas ao transmiti-lo, a RTP cumpriu o seu mandato de serviço público. E ponho-me a pensar qual seria a relação dos espectadores com o cinema português se esta divulgação, não só de um filme mas sobretudo do trabalho de produção cinematográfica, fosse uma aposta permanente em vez de pontual.
Terra e Poder
A Conferência Internacional sobre Cinema e Paisagem, organizada pelo Centro de Estudos Comparatistas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com coordenação da Filipa Rosário, começou ontem e termina amanhã. Informações detalhadas aqui.
Apresentarei uma comunicação no último dia, integrada no painel “Do Colonial ao Pós-Colonial”, com a Michelle Sale e o Paulo Cunha, e moderação da Mariana Liz. Partilho o resumo desse trabalho, “Terra e Poder: As Paisagens do Cinema Pós-Colonialista de Ousmane Sembène”:
O cinema de Ousmane Sembène surgiu depois do Senegal se ter tornado independente do império colonial francês. As suas obras não se limitam a observar a realidade pós-colonial, a tomá-la como ponto de partida, retratando de forma crítica o passado colonial. Elas procuram construir um olhar pós-colonialista, analisando o impacto duradouro do colonialismo no período pós-colonial mesmo quando as narrativas se desenrolam noutra época histórica. Um dos elementos que dá forma a este olhar é a paisagem — mais concretamente, a paisagem como coisa produzida, ligada à organização social e económica. A primeira longa-metragem de Sembène, La noire de... (1966) narra o percurso de Diouana, uma criada que acompanha um casal francês da capital senegalesa para a Riviera Francesa. É neste filme que esta comunicação se vai concentrar. A contraposição da paisagem de Dakar à de Antibes torna-se uma comparação entre o passado e o presente. A estória desdobra-se e desenrola-se nestas paisagens e a história pode ser lida nelas. Depois do domínio colonial, manteve-se aquilo a que Aníbal Quijano chama de colonialidade do poder, uma estratificação social de cunho racial refletida em relações de dominação e subordinação que só se torna clara para Diouana em França. É precisamente a partir deste prisma que o filme disseca o colonialismo e o racismo, espacializando-os. A paisagem francesa é marcada por infraestruturas e meios de transporte que convidam à viagem e à circulação, mas Diouana ficará confinada num apartamento.
MasterSessions CCP 2018
A edição dos Caminhos do Cinema Português deste ano inclui três MasterSessions. Estas sessões são uma co-organização com o LIPA - Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas, com moderação minha.
A 26 de Novembro, segunda-feira, o tema é “A Representação da Crise no Cinema Português nos Festivais de Cinema Europeus”, com a participação de Filipa Reis (Uma Pedra no Sapato), Paulo Cunha (UBI), e Saúl Rafael (NOS Lusomundo Audiovisuais).
Dois dias depois, a 28 de Novembro, discutem-se “Novas Propostas Formais no Cinema Contemporâneo”, com Alexandre Oliveira (Ar de Filmes), Ana Isabel Soares (UAlg), e Fausto Cruchinho (UC).
A última sessão é a 30 de Novembro, sexta-feira, dedicada ao tópico “O Valor de uma Marca do/no Cinema Português”, com João Gomes de Almeida, Jorge Pelicano, e Luis Filipe Menezes (UC).
Todos os encontros começam às 18h. Informações detalhadas aqui.
The Class of Images
The international conference Politics and Image, organized by the Institute of Philosophical Studies, is taking place this week between the 15 and 17th of November at the University of Coimbra. More information on this page.
Here is the abstract for my paper, “The Class of Images: Sketch for a Research Project”:
The concept of class has been progressively erased in contemporary discussions around art — and other topics. The explanatory power of this economic and social category, as articulated by Karl Marx, has been annulled precisely at a time when the contradictions of late capitalism are growing, composing an ideological background that creates conditions for the perpetuation of this system. From a Marxist point of view, class is neither a product of Marx’s invention nor of anyone who thinks with him, but reflects existing social relations and the dynamics of everyday life. By isolating art production from historical processes, by privileging the inner workings of languages, by favoring an aestheticist approach to art, postmodernist cultural theory has relinquished critical knowledge about art as a phenomenon irremediably pertaining to the social fabric. If in this theoretical framework, cultural differences replaced class antagonisms as the driving force of society, then one must ask how these differences emerge and operate, what determines them and what do they produce, thus recognizing the fundamental importance of their material basis. To think critically about art to its foundations is to re-materialize it as a production process instead of analyzing works of art in an idealist manner. The same may be said about religion. In order to tackle these matters, I will focus on film images understood as material, creative, and symbolic productions, and in the way they evoke class antinomies, expose class marks, and use Christian concepts and imagery in the portrait of working-class life in American cinema.
Terceiro Andar
O Teatro Académico de Gil Vicente mostra hoje à noite o documentário Terceiro Andar (2016), realizado por Luciana Fina. A sessão integra-se na programação do Linha de Fuga – Laboratório e Festival de Artes Performativas. Participarei numa conversa pós-filme com a realizadora e José Maçãs de Carvalho (Colégio das Artes - Universidade de Coimbra). Mais informação aqui.
“A Cultura É Política”
O próximo Seminário Permanente (CEIS20) é sobre cinema e pós-colonialismo, com uma apresentação da Michelle Sales (UFRJ) e uma minha. A minha parte tem o título “‘A Cultura É Política’: O Cinema de Ousmane Sembène na África Pós-Colonial” e o seguinte resumo:
Ousmane Sembène (1923-2007), cineasta e escritor senegalês, é uma das figuras mais marcantes do cinema africano. A sua obra surgiu no rescaldo da libertação nacional do Senegal do poder colonial francês e procurou analisar criticamente as contradições do presente desvendando linhas de continuidade e quebra com o passado da África pré-colonial e colonial. Tratava-se, assim, de refletir por meios artísticos sobre a complexa história de África e dos seus povos e comunidades. Sembène deu particular atenção à persistência da ideologia colonialista e imperialista para além do período colonial. Contextualizando e percorrendo os seus filmes, em articulação com o seu discurso em entrevistas e palestras, sobressai a ideia de que a cultura (da qual a arte é uma parte) não pode ser abstraída das suas raízes históricas e da consciência humana que a produz e por ela é produzida.
Uma Mulher Sefardita Face à Lei Judaica
Gett: O Processo de Viviane Amsalem.
Participo na próxima segunda-feira num encontro científico com o título Do Discurso e da Cultura na Diáspora Sefardita Portuguesa, organizado pela minha colega Anabela Fernandes no âmbito das comemorações dos 20 anos do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. Resumi assim o meu contributo para a mesa-redonda que decorrerá de manhã:
Gett: O Processo de Viviane Amsalem (Gett, 2014) é um filme realizado por Ronit Elkabetz e Shlomi Elkabetz sobre uma mulher sefardita que procura divorciar-se do marido depois de mais de 20 anos num casamento infeliz. Ela apela à compaixão dele para obter o documento de que necessita, mas como ele não acede ao pedido o caso tem de ser decidido num tribunal religioso. A palavra que dá título à obra, gett, designa o documento de divórcio que, segundo a lei judaica, deve ser apresentado pelo marido à sua esposa para levar a efeito um divórcio entre ele e ela. Apresentarei um conjunto de comentários sobre este filme que teve honras de estreia no Festival de Cinema de Cannes, salientando o modo como equaciona a emancipação feminina no interior da comunidade judaica. A realizadora e atriz Ronit Elkabetz, que interpreta a protagonista Viviane, foi distinguida com o prémio da Federação Sefardita Americana para as artes.Informações detalhadas sobre este evento aqui.
Resistencias de los pueblos indígenas frente a los extractivismos
Uma iniciativa sobre as realidades dos povos indígenas no Panamá e na Colômbia, co-organizada pelo LIPA - Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas. “Resistencias de los pueblos indígenas frente a los extractivismos, Panamá y Colombia” contará com intervenções de Begoña Dorronsoro (CES-UC) e Cebaldo de León Inawinapi (CETRAD-UTAD). Mais informações aqui.
O Regresso das Sessões do Carvão
A Rádio Universidade de Coimbra falou comigo a propósito do regresso das Sessões do Carvão, como Sessões do Carvão — O Cinema Falado. A entrevista pode ser ouvida aqui.
Conversas à Volta do Cinema: Ida
O ciclo de sessões Conversas à Volta do Cinema começa esta semana na Universidade Sénior da Curia. Trata-se de uma actividade organizada em colaboração com o Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. A primeira sessão cabe-me a mim, no dia 24 de Outubro entre as 15h e as 18h. Escolhi o filme Ida (2013), realizado por Paweł Pawlikowski, para conversarmos à volta dele.
Nos próximos meses, o ciclo contará com a participação de José Maçãs de Carvalho, Carlos Antunes, Catarina Maia, e Abílio Hernandez.Mulheres Especulares
Mulher Fatal (Femme Fatale, 2012).
Participo hoje no Seminário RIAL: “Espelhos do Film Noir”, organizado pelo Centro de Estudos Comparatistas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Agradeço ao José Bértolo o convite que me dirigiu e que aceitei sem pestanejar. O meu contributo tem o título “Mulheres Especulares: Género e Desdobramento no Neo-Noir de Brian De Palma”.
O Cálculo dos Silêncios
Após a estreia de O Deserto Vermelho (Il deserto rosso, 1964), Jean-Luc Godard entrevistou Michelangelo Antonioni:
GODARD: O primeiro título do filme era Celeste e Verde...ANTONIONI: Abandonei-o, pois não me parecia um título suficientemente viril; estava demasiado directamente ligado à cor. Nunca pensei primeiro na cor em si. O filme nasceu a cores, mas sempre pensei primeiro no que dizer, como é natural, e que ajudava a exprimir através da cor. Nunca pensei: vou pôr um azul perto de um castanho. Tingi a erva que cerca a barraca na margem da lagoa para reforçar o sentido de desolação, da morte. Havia uma verdade da paisagem a reproduzir: quando as árvores estão mortas têm esta cor.
GODARD: O drama não é, portanto, psicológico, mas plástico...
ANTONIONI: É a mesma coisa.[1]
A última frase é esclarecedora. No cinema de Antonioni, a depuração da composição é o produto de uma recusa progressiva da separação entre a dimensão psicológica do drama e as formas do filme. Tal resulta na clara dissolução da construção dramática oitocentista, como bem observou o crítico Angelo Moscariello. A forma é, simultaneamente, revelação e criação. Arrisca uma concepção abstracta da própria imagem do mundo. Parte de um silêncio inaugural que vai desdobrando para determinar a sua importância.
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[1] AA.VV., A Política dos Autores, trad. Isabel Maria Lucas Pascoal (Lisboa: Assírio & Alvim, 1976), 386.
Sessões do Carvão — O Cinema Falado:
Lisboa, Crónica Anedótica (1930) / Tiago Baptista
As novas Sessões do Carvão arrancam este mês: uma sessão mensal, com um filme escolhido por alguém profissionalmente ligado ao cinema que também o comenta.
O Cinema Devolvido ao Povo
O CineAvante! deste ano foi excelente. Explico porquê num artigo que foi publicado hoje no jornal Avante!, disponível aqui.
Roma
Escrevi um pequeno texto informativo sobre o filme Roma (2018), dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón, e os galardões que arrecadou na última edição do Festival de Cinema de Veneza: o Leão de Ouro e o prémio da SIGNIS (Associação Católica Mundial para a Comunicação). “Roma: Distinção Católica para um Filme sobre a Coragem Solidária das Mulheres” pode ser lido aqui no Religionline.
CineAvante! 2018
Há oito anos, na sua primeira edição, o CineAvante mostrou ao que vinha, e de imediato foi acolhido com agrado pelos visitantes da Festa.De então para cá, a cada nova edição, a adesão das pessoas foi crescendo, ganhou um público fiel, o projecto consolidou-se, conquistou um estatuto e lugar próprios no programa da Festa.
O programa completo está disponível aqui.
Being Open to Possibilities That We Can’t Know Yet
THRESHOLDS (For Tobe Hooper) (2017).
My long interview with the generous Catherine Grant about her move to Birkbeck, University of London, teaching and research, the project [in]Transition, changes in scholarship, and technology and the humanities has just been published in Aniki: Portuguese Journal of the Moving Image. It is titled “‘Being Open to Possibilities That We Can’t Know Yet’: An Interview with Catherine Grant”. Read the abstract and download it here.
O Espectáculo da Desintegração
O grande cómico francês Jacques Tati foi um dos mais fecundos observadores do humano face às mecânicas que o ultrapassam na época moderna. O trajecto da sua célebre personagem, o senhor Hulot, é rumo à solidão: do labirinto social de As Férias do Senhor Hulot (Les Vacances de Monsieur Hulot, 1953) à ininteligibilidade do espaço em Playtime - Vida Moderna (Playtime, 1967), a humanidade aparece como elemento perturbador de uma ordem aparentemente sem origem. A comicidade das sequências é o resultado da irrisão e ampliação, dos gestos mais banais aos edifícios simétricos e assépticos, visando a dialéctica entre a individualidade e a colectividade através da saturação do real. Mas tudo permanece inconclusivo. Talvez por isso Serge Daney tenha afirmado que só Jacques Tati, depois de Buster Keaton, conseguiu fazer rir o maior número de pessoas com o espectáculo das coisas que se desintegram.
Playtime - Vida Moderna é uma obra de confronto directo com o espaço criado pela arquitectura moderna. A exclusão do adorno, o recurso à padronização, o esvaziamento dos volumes, os ângulos rectos, entre outros princípios formais, aparecem neste filme associados a um trabalho rigoroso e exaustivo de inventariação analítica do espaço criado por essa arquitectura. O cineasta, qual demiurgo, não recriou Paris: construiu uma representação complexa da capital francesa levada ao absurdo. Tal processo aproxima o labor detalhado de Tati do de um arquitecto que edifica um universo a partir dos contributos de Jacques Lagrange e Eugène Roman (cenários), Jean Badal e Andreas Winding (fotografia), Francis Lemarque (música), Jacques Maumont (som), e Gérard Pollicand (montagem).
No horizonte da densidade conceptual desta obra não estão conclusões. Playtime - Vida Moderna é um filme de situações e de questões que fixa a resistência ao entendimento como algo intrínseco ao espaço moderno, na sua inesperada linearidade, no mistério da sua funcionalidade. Daí também os equívocos gerados pelas suas características (como a transparência). O que é artisticamente mais significativo é o modo como concatenea o abstracto e o concreto — nas linhas horizontais e verticais, na composição visual geométrica e em extensão, na narrativa cumulativa — e gera um efeito de desnaturalização. No início do filme, à imagem do céu, espaço diluído e sem pontos de fuga, sobrepõe-se a imagem de um edifício, caixa ortogonal de metal e vidro. Imagem contra imagem. A paisagem construída nasce da colisão das dimensões arquitectónicas, plásticas, e narrativas. A estrutura livre do filme abre-se à experiência: cada espaço, cada pormenor, cada gesto, podem ser observados como puros elementos contrastantes. Face ao pouco êxito comercial da obra, que até aquela altura tinha sido a mais cara produção do cinema francês, o cineasta terá dito que esperava um pouco mais de atenção e de imaginação por parte dos espectadores. Porque Playtime - Vida Moderna molda também um espaço cultural constituído por miragens que emergem como símbolos do passado — como o reflexo numa porta de vidro do Arco do Triunfo e de outros monumentos que vai pontuando a acção como uma assombração.
Os Segredos dos Lugares
Olhar e registar são actos que captam e traduzem os segredos dos lugares. Pelo menos para quem liga a arte do cinema ao trabalho da memória — a memória com duração, a memória que dura. As imagens em movimento filmadas têm uma relação ontológica com o modelo, como bem viu André Bazin ao analisar criticamente e definir teoricamente o realismo perceptivo no cinema. Os filmes do iraniano Abbas Kiarostami não procedem à redução do irredutível, em vez disso produzem uma relação indissociável entre as realidades espaciais filmadas e as do ecrã. A paisagem é protagonista. As personagens integram-se nela, por vezes até à diluição. Em Através das Oliveiras (Zire darakhtan zeyton, 1994), as presenças humanas têm uma força telúrica. Quando duas personagens, o rapaz que fala demais e a rapariga que não lhe responde, se afastam até ficarem reduzidas a pontos brancos no final de Através das Oliveiras, a distância mantida corresponde à captação e tradução da paisagem como cenário tornado humano e dramático através do lançamento da vista em redor.
Imagens Ameaçadas
Qual é o papel da atenção na ligação entre a realidade e o imaginário? Já as palavras de Dziga Vertov e as obras realizadas por ele sublinhavam a importância da composição da atenção, relembrando, em simultâneo, a distracção com que existimos e as possibilidades perceptivas que os filmes nos podem oferecer. O cinema tem a ambiguidade da percepção inscrita nele. As coordenadas espaciais de cada obra são inseparáveis de um entrelaçamento de ideias de cinema. Seguro (Safe, 1995), dirigido por Todd Haynes, encena a tragédia do isolamento de uma personagem feminina alérgica ao meio ambiente onde vive. Os enquadramentos sublinham o distanciamento, destacando os corpos do cenário, forçando simetrias, e figurando imagens assépticas. Fazem sobressair o vazio, recorrendo a planos fixos e a lentos movimentos de câmara. O espaço das imagens tem qualquer coisa de cósmico e é permanentemente ameaçado pela doença e pela desordem.
Fronteiras e Foragidos
O jornal Avante! publicou hoje um artigo meu sobre O Outro Lado da Esperança (Toivon tuolla puolen, 2017), realizado por Aki Kaurismäki, recentemente lançado em DVD. Está disponível aqui e tem o título “Fronteiras e Foragidos”.
O Espaço como Atmosfera
Jacques Derrida revelou o modo como a linguagem se torna um conjunto de articulações espaciais. Torna-se arquitectura, fronteiras e limites do espaço, plasticidade das formas, contornos dos significados. Isto é, toda a expressão é material, uma organização espacial. Na expressão cinematográfica passa-se o mesmo. O espaço diegético só por si é uma abstracção cuja existência depende do espaço fílmico, construído e estruturado. É evidente que para compreendermos a arquitectura é necessário movermo-nos nela, mas não é menos verdade que o espaço arquitectónico pertence ao imaginário fílmico. Podemos mesmo dizer que essa noção de espaço é imprescindível à experiência da maior parte dos filmes, à percepção que o cinema oferece. Também Gilles Deleuze o diz de outra maneira. E cada filme cumpre isso com um estilo próprio (embora não necessariamente singular). Por exemplo, Seven - 7 Pecados Mortais (Se7en, 1996), dirigido por David Fincher, constrói uma metrópole claustrofóbica e densa a partir da hábil combinação de elementos — cenografia, fotografia, performance. É como se o espaço fosse um conceito atmosférico que desperta as imagens.
A Encenação do Excesso
A generalidade do cinema depende do acto figurativo, do que se vê, mas nem todo transforma esse acto num gesto de encenação do excesso. Encontramos essa forma de expressão em filmes como Duelo ao Sol (Duel in the Sun, 1946), realizado por King Vidor, produzido por David O. Selznick, onde a sombra traça os contornos da tragédia. David Cronenberg segue um caminho semelhante na sua obra, encenando o excesso como intensidade. Crash (1996) confirma a centralidade da corporalidade na sua filmografia. O contacto com superfície glaciais intensifica a procura de vida, mais ou menos humana, dos corpos. Estes corpos parecem estátuas que pulsam. Um olho clínico percorre a chapa de um avião e descobre uma mulher que se funde com ela. Um ouvido clínico capta vozes metálicas em suspenso. Os dedos de Catherine Ballard (Deborah Kara Unger) agarram-se à barra de uma varanda, a câmara avança ao ritmo do sexo, fixando-se no fluxo de automóveis nas artérias a que chamamos auto-estradas, em abundante azul.
Tsahal
Pensamos em Claude Lanzmann e o filme de que nos lembramos é, regra geral, Shoah (1985). Mas o realizador deixou-nos outro filme monumental, com mais de 5 horas: o mais controverso e menos consensual Tsahal (1994). Um documentário reflexivo sobre a identidade judaica, Israel e as suas forças de defesa. Criticado de lados opostos, mantém a sua complexidade intacta.
Construção
Eis o ponto de partida: utilizar a câmara de filmar como um cine-olho muito mais perfeito do que o olho humano para explorar o caos dos fenómenos visíveis que enchem o espaço. O cine-olho vive e move-se no tempo e no espaço, ele recolhe e fixa as impressões não à maneira humana, mas de um modo completamente diferente. [...]
Eu sou o cine-olho. Eu sou o construtor. Coloquei-te, a ti, criado por mim, na sala mais extraordinária, que não existia antes deste momento, e que também foi criada por mim. Esta sala tem doze paredes que fui buscar a diferentes partes do mundo. Combinando as filmagens das paredes e dos pormenores, consegui dispô-las na ordem que te agrada e consegui construir com precisão, baseando-me nos intervalos, uma cine-frase que, justamente, é esta sala.
— CONSELHO DOS TRÊS, 1923
Conversar ao Espelho
Paris, Texas (1984) começa com um movimento que acompanha a visão de uma águia até esta aterrar em cima de um monte de pedras. A ave observa um homem que, segundo o realizador Wim Wenders, “surge do nada, algures no deserto e regressa à civilização”. Esta deambulação, da águia e do homem, traça o próprio itinerário do filme. A cena em que Travis (Harry Dean Stanton), o tal homem, encontra a sua ex-mulher, Jane (Nastassja Kinski) é, por essa razão, o núcleo da obra. Há um vidro espelhado entre os dois que não permite que ela o veja. Mas ele consegue vê-la. O campo/contracampo que divide as personagens em cada espaço vai dando lugar a imagens do espelho, à medida que a conversa entre eles se torna mais difícil, porque ele não diz quem é e ela não o entende. Se ela vê apenas o reflexo do presente, ele procura nela um reflexo do passado. A cena é extensa, sobretudo porque se estende para além do diálogo inicial, transformando um diálogo num monólogo — ou, talvez, um monólogo a dois num diálogo a um. O ponto de vista limitado dela não lhe permite perceber que ele se foi embora. Jane entrega-se ao seu reflexo e continua a conversar, desdobrando-se em falante e ouvinte. A intimidade encoberta entre os dois nada pode contra a transparência da solidão.
Dimensões do Som
A sequência de abertura do western Aconteceu no Oeste (C’era una volta il west, 1968) constrói um espaço. Dá-lhe densidade. Permite que as suas dimensões se tornem quase tangíveis, quase medíveis. Os elementos cenográficos são compostos em profundidade e a clareza visual é complementada pela montagem sonora. O cinema de Sergio Leone ancora-se, em grande medida, na compreensão do funcionamento dos códigos dos géneros cinematográficos para os transformar em pura abstração. Nesse sentido, a este filme podemos acrescentar um título como Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984), um filme de gangsters. O movimento de transformação em Aconteceu no Oeste desenvolve-se através de um rigoroso jogo de escalas, linhas, perspectivas, detalhes. O som é um dos elementos que confere características multidimensionais à imagem e, neste caso, com grande relevo. O controlo da graduação cria um conjunto de relações formado a partir de pequenos ruídos contínuos — o voo da mosca, as gotas de água, a rotação das hélices — que ora são combinados ora são separados. O som da rotação das hélices, por exemplo, é longínquo e insistente durante toda a sequência, até ocupar por inteiro a imagem e o som rompendo o silêncio que sucede ao tiroteio.
Sobre o Silêncio do Mundo
Para Marguerite Duras, primeiro tenta-se escrever até que um dia se começa a escrever. Nos seus textos sobressai uma extrema plasticidade da escrita, a literatura como coisa fátua, uma ironia cortante que parece desfazer o mundo sem o refazer. Escrevia ruínas, uma realidade precária, sem abrigo. Para ela, mais do que uma forma de preservação, a escrita era a consumação do que se vive, um processo de desgaste idêntico ao do tempo que passa. Duras como cineasta era semelhante à Duras como escritora. Basta India Song (1975) para concluir isso. Uma paisagem despovoada ou um arranjo de objectos tornam-se de repente num território interior. É a palavra que abre esse lugar interno, mas poroso. A palavra que recusa ilustrar, que assume a sua espessura humana, que nasce sobre o silêncio do mundo.