Being Open to Possibilities That We Can’t Know Yet
THRESHOLDS (For Tobe Hooper) (2017).
My long interview with the generous Catherine Grant about her move to Birkbeck, University of London, teaching and research, the project [in]Transition, changes in scholarship, and technology and the humanities has just been published in Aniki: Portuguese Journal of the Moving Image. It is titled “‘Being Open to Possibilities That We Can’t Know Yet’: An Interview with Catherine Grant”. Read the abstract and download it here.
O Espectáculo da Desintegração
O grande cómico francês Jacques Tati foi um dos mais fecundos observadores do humano face às mecânicas que o ultrapassam na época moderna. O trajecto da sua célebre personagem, o senhor Hulot, é rumo à solidão: do labirinto social de As Férias do Senhor Hulot (Les Vacances de Monsieur Hulot, 1953) à ininteligibilidade do espaço em Playtime - Vida Moderna (Playtime, 1967), a humanidade aparece como elemento perturbador de uma ordem aparentemente sem origem. A comicidade das sequências é o resultado da irrisão e ampliação, dos gestos mais banais aos edifícios simétricos e assépticos, visando a dialéctica entre a individualidade e a colectividade através da saturação do real. Mas tudo permanece inconclusivo. Talvez por isso Serge Daney tenha afirmado que só Jacques Tati, depois de Buster Keaton, conseguiu fazer rir o maior número de pessoas com o espectáculo das coisas que se desintegram.
Playtime - Vida Moderna é uma obra de confronto directo com o espaço criado pela arquitectura moderna. A exclusão do adorno, o recurso à padronização, o esvaziamento dos volumes, os ângulos rectos, entre outros princípios formais, aparecem neste filme associados a um trabalho rigoroso e exaustivo de inventariação analítica do espaço criado por essa arquitectura. O cineasta, qual demiurgo, não recriou Paris: construiu uma representação complexa da capital francesa levada ao absurdo. Tal processo aproxima o labor detalhado de Tati do de um arquitecto que edifica um universo a partir dos contributos de Jacques Lagrange e Eugène Roman (cenários), Jean Badal e Andreas Winding (fotografia), Francis Lemarque (música), Jacques Maumont (som), e Gérard Pollicand (montagem).
No horizonte da densidade conceptual desta obra não estão conclusões. Playtime - Vida Moderna é um filme de situações e de questões que fixa a resistência ao entendimento como algo intrínseco ao espaço moderno, na sua inesperada linearidade, no mistério da sua funcionalidade. Daí também os equívocos gerados pelas suas características (como a transparência). O que é artisticamente mais significativo é o modo como concatenea o abstracto e o concreto — nas linhas horizontais e verticais, na composição visual geométrica e em extensão, na narrativa cumulativa — e gera um efeito de desnaturalização. No início do filme, à imagem do céu, espaço diluído e sem pontos de fuga, sobrepõe-se a imagem de um edifício, caixa ortogonal de metal e vidro. Imagem contra imagem. A paisagem construída nasce da colisão das dimensões arquitectónicas, plásticas, e narrativas. A estrutura livre do filme abre-se à experiência: cada espaço, cada pormenor, cada gesto, podem ser observados como puros elementos contrastantes. Face ao pouco êxito comercial da obra, que até aquela altura tinha sido a mais cara produção do cinema francês, o cineasta terá dito que esperava um pouco mais de atenção e de imaginação por parte dos espectadores. Porque Playtime - Vida Moderna molda também um espaço cultural constituído por miragens que emergem como símbolos do passado — como o reflexo numa porta de vidro do Arco do Triunfo e de outros monumentos que vai pontuando a acção como uma assombração.
Os Segredos dos Lugares
Olhar e registar são actos que captam e traduzem os segredos dos lugares. Pelo menos para quem liga a arte do cinema ao trabalho da memória — a memória com duração, a memória que dura. As imagens em movimento filmadas têm uma relação ontológica com o modelo, como bem viu André Bazin ao analisar criticamente e definir teoricamente o realismo perceptivo no cinema. Os filmes do iraniano Abbas Kiarostami não procedem à redução do irredutível, em vez disso produzem uma relação indissociável entre as realidades espaciais filmadas e as do ecrã. A paisagem é protagonista. As personagens integram-se nela, por vezes até à diluição. Em Através das Oliveiras (Zire darakhtan zeyton, 1994), as presenças humanas têm uma força telúrica. Quando duas personagens, o rapaz que fala demais e a rapariga que não lhe responde, se afastam até ficarem reduzidas a pontos brancos no final de Através das Oliveiras, a distância mantida corresponde à captação e tradução da paisagem como cenário tornado humano e dramático através do lançamento da vista em redor.
Imagens Ameaçadas
Qual é o papel da atenção na ligação entre a realidade e o imaginário? Já as palavras de Dziga Vertov e as obras realizadas por ele sublinhavam a importância da composição da atenção, relembrando, em simultâneo, a distracção com que existimos e as possibilidades perceptivas que os filmes nos podem oferecer. O cinema tem a ambiguidade da percepção inscrita nele. As coordenadas espaciais de cada obra são inseparáveis de um entrelaçamento de ideias de cinema. Seguro (Safe, 1995), dirigido por Todd Haynes, encena a tragédia do isolamento de uma personagem feminina alérgica ao meio ambiente onde vive. Os enquadramentos sublinham o distanciamento, destacando os corpos do cenário, forçando simetrias, e figurando imagens assépticas. Fazem sobressair o vazio, recorrendo a planos fixos e a lentos movimentos de câmara. O espaço das imagens tem qualquer coisa de cósmico e é permanentemente ameaçado pela doença e pela desordem.
Fronteiras e Foragidos
O jornal Avante! publicou hoje um artigo meu sobre O Outro Lado da Esperança (Toivon tuolla puolen, 2017), realizado por Aki Kaurismäki, recentemente lançado em DVD. Está disponível aqui e tem o título “Fronteiras e Foragidos”.
O Espaço como Atmosfera
Jacques Derrida revelou o modo como a linguagem se torna um conjunto de articulações espaciais. Torna-se arquitectura, fronteiras e limites do espaço, plasticidade das formas, contornos dos significados. Isto é, toda a expressão é material, uma organização espacial. Na expressão cinematográfica passa-se o mesmo. O espaço diegético só por si é uma abstracção cuja existência depende do espaço fílmico, construído e estruturado. É evidente que para compreendermos a arquitectura é necessário movermo-nos nela, mas não é menos verdade que o espaço arquitectónico pertence ao imaginário fílmico. Podemos mesmo dizer que essa noção de espaço é imprescindível à experiência da maior parte dos filmes, à percepção que o cinema oferece. Também Gilles Deleuze o diz de outra maneira. E cada filme cumpre isso com um estilo próprio (embora não necessariamente singular). Por exemplo, Seven - 7 Pecados Mortais (Se7en, 1996), dirigido por David Fincher, constrói uma metrópole claustrofóbica e densa a partir da hábil combinação de elementos — cenografia, fotografia, performance. É como se o espaço fosse um conceito atmosférico que desperta as imagens.
A Encenação do Excesso
A generalidade do cinema depende do acto figurativo, do que se vê, mas nem todo transforma esse acto num gesto de encenação do excesso. Encontramos essa forma de expressão em filmes como Duelo ao Sol (Duel in the Sun, 1946), realizado por King Vidor, produzido por David O. Selznick, onde a sombra traça os contornos da tragédia. David Cronenberg segue um caminho semelhante na sua obra, encenando o excesso como intensidade. Crash (1996) confirma a centralidade da corporalidade na sua filmografia. O contacto com superfície glaciais intensifica a procura de vida, mais ou menos humana, dos corpos. Estes corpos parecem estátuas que pulsam. Um olho clínico percorre a chapa de um avião e descobre uma mulher que se funde com ela. Um ouvido clínico capta vozes metálicas em suspenso. Os dedos de Catherine Ballard (Deborah Kara Unger) agarram-se à barra de uma varanda, a câmara avança ao ritmo do sexo, fixando-se no fluxo de automóveis nas artérias a que chamamos auto-estradas, em abundante azul.
Tsahal
Pensamos em Claude Lanzmann e o filme de que nos lembramos é, regra geral, Shoah (1985). Mas o realizador deixou-nos outro filme monumental, com mais de 5 horas: o mais controverso e menos consensual Tsahal (1994). Um documentário reflexivo sobre a identidade judaica, Israel e as suas forças de defesa. Criticado de lados opostos, mantém a sua complexidade intacta.
Construção
Eis o ponto de partida: utilizar a câmara de filmar como um cine-olho muito mais perfeito do que o olho humano para explorar o caos dos fenómenos visíveis que enchem o espaço. O cine-olho vive e move-se no tempo e no espaço, ele recolhe e fixa as impressões não à maneira humana, mas de um modo completamente diferente. [...]
Eu sou o cine-olho. Eu sou o construtor. Coloquei-te, a ti, criado por mim, na sala mais extraordinária, que não existia antes deste momento, e que também foi criada por mim. Esta sala tem doze paredes que fui buscar a diferentes partes do mundo. Combinando as filmagens das paredes e dos pormenores, consegui dispô-las na ordem que te agrada e consegui construir com precisão, baseando-me nos intervalos, uma cine-frase que, justamente, é esta sala.
— CONSELHO DOS TRÊS, 1923
Conversar ao Espelho
Paris, Texas (1984) começa com um movimento que acompanha a visão de uma águia até esta aterrar em cima de um monte de pedras. A ave observa um homem que, segundo o realizador Wim Wenders, “surge do nada, algures no deserto e regressa à civilização”. Esta deambulação, da águia e do homem, traça o próprio itinerário do filme. A cena em que Travis (Harry Dean Stanton), o tal homem, encontra a sua ex-mulher, Jane (Nastassja Kinski) é, por essa razão, o núcleo da obra. Há um vidro espelhado entre os dois que não permite que ela o veja. Mas ele consegue vê-la. O campo/contracampo que divide as personagens em cada espaço vai dando lugar a imagens do espelho, à medida que a conversa entre eles se torna mais difícil, porque ele não diz quem é e ela não o entende. Se ela vê apenas o reflexo do presente, ele procura nela um reflexo do passado. A cena é extensa, sobretudo porque se estende para além do diálogo inicial, transformando um diálogo num monólogo — ou, talvez, um monólogo a dois num diálogo a um. O ponto de vista limitado dela não lhe permite perceber que ele se foi embora. Jane entrega-se ao seu reflexo e continua a conversar, desdobrando-se em falante e ouvinte. A intimidade encoberta entre os dois nada pode contra a transparência da solidão.