Urdiduras e Lavores

19.11.2021

Uma Abelha na Chuva.

Amanhã apresento a comunicação “Urdiduras e Lavores: Refazer Uma Abelha na Chuva” no colóquio Carlos de Oliveira, Uma Escrita Tatuada, na Biblioteca Municipal de Cantanhede. Deixo o resumo:

O projecto de adaptação cinematográfica do romance de Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva (1953), começou na década de 1960, mas o filme só ficou pronto em 1971, tendo estreado no ano seguinte. O realizador Fernando Lopes escreveu o argumento e os diálogos e sentiu a responsabilidade de estar “à altura” do desafio. Contou com a colaboração e o acompanhamento do escritor, mesmo que este tenha mantido a distância necessária para garantir a autonomia do trabalho sobre o texto. A obra de Carlos de Oliveira foi marcada por múltiplas emendas e revisões dos seus livros. Neste contexto de reescrita, o autor do romance viu claramente a possibilidade do projecto fílmico como uma oportunidade para refazer Uma Abelha na Chuva. Manuel Gusmão comenta o processo de despojamento da escrita, de eliminação do supérfluo, que foi marcando a obra do reescritor como envolvendo o apagamento de “tudo o que são exclamações. Tudo o que é uma certa retórica, para reduzir ao osso, para reduzir àquilo que vibrou ou que fica a vibrar.” Refazendo Uma Abelha na Chuva, Lopes chamou ao filme uma “leitura crítica” do romance, mas Carlos de Oliveira foi bem mais longe, caracterizando-o como “um objecto estético excecional” e “a leitura mais profunda de Uma Abelha na Chuva e aquela que, portanto, me agrada mais”.

O propósito desta minha investigação é, assim, analisar Uma Abelha na Chuva como obra refeita.

Tendo em conta este objectivo geral, o primeiro tópico que abordarei é o da tradução expressiva da obra para cinema. As qualidades lacónicas do filme, feito de composições desabitadas, densas texturas visuais e sonoras, gestos que pesam, palavras que estremecem, contribuem para refazer a narrativa e o tom de Uma Abelha na Chuva noutra forma artística, já não como literatura mas como cinema. Ou seja, trata-se de uma análise que assume a distinção entre as duas formas, mas que também salienta a contaminação entre elas, que neste caso pode ser designada como uma afinidade poética entre o livro e o filme, ligando o movimento neo-realista à modernidade artística. Neste percurso analítico, a história da produção do filme tem particular relevância, nomeadamente a longa pós-produção. A montagem, que se assemelha à edição sucessiva de um texto, explorou uma estrutura não linear, disjuntiva, e foi conduzida pelo próprio realizador, com a assistência de Maria Beatriz.

O segundo tema através do qual analisarei Uma Abelha na Chuva como obra refeita é o da leitura situada da obra a partir das observações anteriores sobre o primeiro tópico propondo que Uma Abelha na Chuva seja lido como obra aporética. Recordando as reflexões de Rosa Martelo em torno da poesia neo-realista, através do eixo compromisso-aporia, argumento que a aporia surge como uma força do cinema português de antes e depois do 25 de Abril de 1974, por razões diferentes e em graus distintos. Esta tendência aporética, identificável do novo cinema à contemporaneidade, revela o modo como os filmes surgem sempre numa teia social e histórica, refletindo tanto as limitações opressivas da ditadura como as promessas ainda por cumprir da democracia — a consciência de uma história em aberto, em síntese. Como Uma Abelha na Chuva comprova, a expressão aporética não é necessariamente uma manifestação do desespero. Em vez disso, articula um estado permanente de inquietação que não permite interpretações demasiado redondas ou fechadas.