21.03.2020
Bafatá Filme Clube.
O Canto do Ossobó.
Que linhas unem a cidade-fantasma de Bafatá Filme Clube (2012) às reminiscências de O Canto do Ossobó (2017) no cinema de Silas Tiny?
O seu próximo filme encontra-se em pós-produção e foi rodado em São Tomé com o título provisório Constelações do Equador. Trata-se de uma obra sobre a ponte área criada entre São Tomé e a Nigéria para transportar comida e medicamentos e salvar crianças da violência no contexto da guerra civil nigeriana, depois da secessão do Biafra em 1967. Neste momento, tem dois projectos em desenvolvimento: uma longa-metragem de ficção e o documentário Casa Decana que formará um díptico com O Canto do Ossobó sobre a temática da escravatura no período colonial. Vale a pena reflectir sobre o encadeamento destes projectos, deixando a análise fílmica para tirar algumas conclusões teóricas.
Numa entrevista concedida em 2017, Tiny foi questionado sobre o processo de filmagem e montagem de O Canto do Ossobó, mas a mesma pergunta podia ter sido feita sobre a forma cinematográfica de Bafatá Filme Clube. Talvez a diferença decisiva seja a ligação pessoal que o cineasta tem com São Tomé e Príncipe, que é mais ténue no caso da Guiné-Bissau. Eis a sua resposta:
Como é que se consegue mostrar o passado e falar dele, mas tendo em conta apenas o presente e o que nos rodeia? Todo o desenvolvimento do filme, teve em vista compreender esta questão. No filme existe uma tentativa interligar o presente e o passado, sem definir qualquer tipo de ordem cronológica à partida.[1]
Tiny regressou ao seu país para encontrar vestígios de um passado de trabalho forçado nas roças de produção de cacau em O Canto do Ossobó. Estes vestígios tomam a forma de sinais fantasmáticos, uma espécie de assombrações, tal como aquelas que povoam Bafatá Filme Clube. Os filmes de Tiny ensaiam uma busca pelo passado sem sair do presente, um modo de não quebrar a interligação entre os tempos. Trata-se de um trabalho que se confunde, no caso dele e como ele próprio confessa, com o interesse pelo cinema como arte.[2] Parece interessar-lhe a construção de imagens dialéticas, no sentido benjaminiano, através das imagens cinematográficas, como muito apropriadamente refere Michelle Sales.[3] Escreveu Walter Benjamin sobre este tipo de imagens e a sua autenticidade: “Não se pode dizer que o passado lança a sua luz sobre o presente, nem que o presente lança a sua luz sobre o passado; a imagem é antes aquilo em que em que o já foi converge com o agora numa constelação fulminante.”[4] O facto de um dos próximos projetos do cineasta mencionar o conceito imagético de constelações no seu título demonstra como o seu trabalho se aproxima do pensamento do filósofo alemão. Como Benjamin desenvolve, a questão que o ocupa é a da superação da relação temporal entre passado e presente por uma relação dialéctica entre o que foi (o outrora) e o que é (o agora). Ler Bafatá Filme Clube e O Canto do Ossobó, como procurei fazer brevemente, é aproveitar a possibilidade de conhecimento aberta pelo agora das suas imagens. Isso “traz consigo em alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda a leitura”.[5] Este é um cinema em que o risco necessário para a construção de um olhar crítico e desimpedido é partilhado entre quem cria palavras lapidares de
as imagens e quem as lê.
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[1] Silas Tiny, “Entrevista”, in doclisboa’17 / Projecto Educativo (Lisboa: Apordoc – Associação pelo Documentário, 2017), 16, http://www.doclisboa.org/2017/wp-content/uploads/dossier-projecto-educativo.pdf.
[2] Ibid.
[3] Michelle Sales, “Cinema negro português”, in Avanca | Cinema 2019, ed. António Costa Valente (Avanca: Edições Cine-Clube de Avanca, 2019), 327.
[4] Walter Benjamin, As Passagens de Paris, trad. João Barrento (Lisboa: Assírio & Alvim, 2019), 592.
[5] Ibid.