04.02.2020
A história do cinema português tem sido escrita com ausências que fazem esquecer a sua dimensão colaborativa. A arte do cinema nasce do esforço colectivo. Henrique Espírito Santo soube isso como poucos e essa consciência fez dele uma figura marcante.
A sua ligação ao cinema começou na década de 1950, no movimento cineclubista. Foi dirigente do cineclube Imagem entre 1954 e 1970. Os seus textos críticos para jornais diários e revistas como a Seara Nova e a Vértice prolongaram o trabalho de divulgação e discussão desses espaços. Os cineclubes eram lugares de liberdade e luta antifascista. “O cineclubismo foi o grande movimento cultural de massas antes do 25 de Abril”, lembrava ele. Para ele, os cineclubes continuam a ter um papel fundamental a desempenhar. Afirmou isso há seis anos, quando foi homenageado no Fantasporto, em forma de apelo: “Os cineclubes continuam, há uma federação, e é preciso que estejam atentos e lutem ao lado dos cineastas, das associações de realizadores, das associações de produtores, de técnicos, porque estamos de novo numa situação difícil.” Uma situação difícil que permanece.
Tinha-se tornado militante do Partido Comunista Português (PCP) em 1957. Em 1963, foi preso pela PIDE e condenado sob a acusação de animus conspirandi, por actividades ligadas ao sector de espectáculos do PCP. Esteve encarcerado mais de um ano. Foi acusado de ser conspirador e era-o. Foi-o sempre. Se ser conspirador é um crime, foi um crime de uma vida.
Em 1966, tornou-se profissional de cinema. Trabalhou com José Fonseca e Costa na Unifilme, criada em 1967. Entre 1972 e 73, esteve associado ao Centro Português de Cinema, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que impulsionou o Novo Cinema Português, movimento de ruptura estética, cultural e social. Fundou a Cinequanon em 1974, com o director de fotografia Elso Roque, entre outros, e a Prole Filme em 1976, com o realizador Luís Filipe Rocha. Embora tivesse trabalhado como actor, foi na produção que construiu uma carreira.
Depois da Revolução de Abril, fez parte do Núcleo de Produção do Instituto Português de Cinema. Integrou o Colectivo dos Trabalhadores da Actividade Cinematográfica que filmou As Armas e o Povo, entre 25 de Abril e o 1.º de Maio de 1974. Foi membro da Célula do Cinema do PCP, que produziu o mordaz As Desventuras do Drácula Von Barreto nas Terras da Reforma Agrária (1977). Nele desempenhou o papel da personagem do título, inspirada em António Barreto, Ministro da Agricultura e Pescas do Partido Socialista, destruidor do processo libertador da Reforma Agrária.
Entre 1978 e 1980, foi professor de produção na Escola de Cinema do Conservatório e em Angola. O caderno Produção de Filmes resultou destas aulas. O seu trabalho de formação profissional na área da produção marcou profundamente o cinema português. O seu percurso como director de produção começou em 1971, com O Recado de Fonseca e Costa. Entre os filmes cuja produção dirigiu contam-se peças centrais do cinema português como A Promessa (1972) de António de Macedo, primeiro filme português seleccionado para o Festival de Cannes, Jaime (1974) de António Reis, Benilde ou a Virgem-Mãe (1975) e Amor de Perdição (1979) de Manoel de Oliveira, e O Bobo (1987) de José Álvaro Morais, primeiro filme português premiado no Festival de Locarno. Trabalhou ainda com outros cineastas notáveis como João César Monteiro, Margarida Gil, João Mário Grilo, Solveig Nordlund, Alberto Seixas Santos, e Jorge Silva Melo. O documentário Até Amanhã, Henrique!, realizado em 2017 por Miguel Cardoso, fixa o essencial dessa história que se confunde com a do cinema português.
A sua dedicação foi reconhecida com um prémio da Academia Portuguesa de Cinema em 2014 e um ciclo e catálogo da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema em 2016. O seu nome é incontornável porque ele não contornou dificuldades, nem cultivou amarguras. Defendeu o cumprimento do dever social do estado no financiamento da cultura, permitindo o risco da criação e garantindo a diversidade de opções estéticas. Teve a coragem de um conspirador generoso e solidário por outra sociedade, livre da vampirização humana, empenhado na cultura como campo humanista de convivências.[1]
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[1] Publicado em A Voz do Operário 141, n.º 3075: 15, https://vozoperario.pt/jornal/2020/02/03/uma-vida-conspirada.