Algumas notas rápidas sobre as duas recentes polémicas “religiosas” que envolveram duas produções da Netflix.
Em relação a A Primeira Tentação de Cristo (2019), realizado por Rodrigo Van Der Put em parceira com o grupo Porta dos Fundos, pergunto-me se os cristãos transtornados que se organizaram contra a distribuição do filme o viram do princípio ao fim. É possível que não tenham visto mais do que o momento em que Jesus chega a casa na companhia de um homem. Não sendo canónica, nem querendo ser, trata-se de uma história de tentação paralela à crónica das tentações no deserto. Que o gay Orlando, interpretado por Fábio Porchat, seja tão caricatural e acabe por ser a encarnação do mal, Lucifer, demonstra que a representação das pessoas homossexuais no filme é, inesperadamente, sem imaginação e negativa. Quem atacou os escritórios da Porta dos Fundos a 24 de Dezembro, além de confundir a fé cristã com a ideologia das armas, a estrela do Natal com os incêndios dos cocktails Molotov, parece-me que pensou pouco sobre o que viu. Se é que viu, volto a conjecturar. Eu, como admirador do grupo, só posso observar que já fizeram bem melhor no campo humorístico. A Primeira Tentação de Cristo é uma coisa atabalhoada.
Dois Papas (Two Popes, 2019), realizado por Fernando Mereilles, traça um retrato imaginado e dramatizado do Papa Bento XVI e do Cardeal Jorge Mario Bergoglio (futuro Papa Francisco) com diversas subtilezas que vão muito além do contraste entre um e outro. Anthony Hopkins e Jonathan Pryce ajudam muito. É verdade que o filme força esse contraste, mas segue esse caminho para explorar essa tensão permanente entre a verdade que a Igreja transporta, o depósito da fé que conserva, e a tradição que se vai relacionando com o espírito de cada época, como dizia o teólogo dominicano Edward Schillebeeckx. Se vemos a agilidade de Bergoglio a calcorrear o jardim, também vemos a vitalidade de Bento XVI quando toca piano. Acabam por dançar os dois. Outra forma de o filme não criar uma simples oposição entre os dois, é o modo como põe as mesmas palavras na boca de um e de outro em momentos diferentes da narrativa: “Eu mudei.” A coragem que é preciso para mudar. A humildade, também. Parece-me que o filme é sobretudo sobre essa viagem corajosa e humilde de cada um e dos dois em conjunto, da Igreja. Reparei que há católicos muito zangados com o filme, embora lhe reconheçam méritos artísticos. Mais uma vez, dei-me conta que há quem o comente sem o ter visto — em muitos casos, recusando-se a vê-lo à partida. Talvez estejam a ser mais papistas que o Papa, conforme o ditado. A obra foi mostrada na Santa Sé a um grupo de cardeais e padres. Pryce contou mais tarde que eles saíram da sala a sorrir e salientaram, não o rigor, mas a honestidade de Dois Papas.