Tentações e Viagens

31.12.2019


Dois Papas.

Algumas notas rápidas sobre as duas recentes polémicas “religiosas” que envolveram duas produções da Netflix.

Em relação a A Primeira Tentação de Cristo (2019), realizado por Rodrigo Van Der Put em parceira com o grupo Porta dos Fundos, pergunto-me se os cristãos transtornados que se organizaram contra a distribuição do filme o viram do princípio ao fim. É possível que não tenham visto mais do que o momento em que Jesus chega a casa na companhia de um homem. Não sendo canónica, nem querendo ser, trata-se de uma história de tentação paralela à crónica das tentações no deserto. Que o gay Orlando, interpretado por Fábio Porchat, seja tão caricatural e acabe por ser a encarnação do mal, Lucifer, demonstra que a representação das pessoas homossexuais no filme é, inesperadamente, sem imaginação e negativa. Quem atacou os escritórios da Porta dos Fundos a 24 de Dezembro, além de confundir a fé cristã com a ideologia das armas, a estrela do Natal com os incêndios dos cocktails Molotov, parece-me que pensou pouco sobre o que viu. Se é que viu, volto a conjecturar. Eu, como admirador do grupo, só posso observar que já fizeram bem melhor no campo humorístico. A Primeira Tentação de Cristo é uma coisa atabalhoada.

Dois Papas (Two Popes, 2019), realizado por Fernando Mereilles, traça um retrato imaginado e dramatizado do Papa Bento XVI e do Cardeal Jorge Mario Bergoglio (futuro Papa Francisco) com diversas subtilezas que vão muito além do contraste entre um e outro. Anthony Hopkins e Jonathan Pryce ajudam muito. É verdade que o filme força esse contraste, mas segue esse caminho para explorar essa tensão permanente entre a verdade que a Igreja transporta, o depósito da fé que conserva, e a tradição que se vai relacionando com o espírito de cada época, como dizia o teólogo dominicano Edward Schillebeeckx. Se vemos a agilidade de Bergoglio a calcorrear o jardim, também vemos a vitalidade de Bento XVI quando toca piano. Acabam por dançar os dois. Outra forma de o filme não criar uma simples oposição entre os dois, é o modo como põe as mesmas palavras na boca de um e de outro em momentos diferentes da narrativa: “Eu mudei.” A coragem que é preciso para mudar. A humildade, também. Parece-me que o filme é sobretudo sobre essa viagem corajosa e humilde de cada um e dos dois em conjunto, da Igreja. Reparei que há católicos muito zangados com o filme, embora lhe reconheçam méritos artísticos. Mais uma vez, dei-me conta que há quem o comente sem o ter visto — em muitos casos, recusando-se a vê-lo à partida. Talvez estejam a ser mais papistas que o Papa, conforme o ditado. A obra foi mostrada na Santa Sé a um grupo de cardeais e padres. Pryce contou mais tarde que eles saíram da sala a sorrir e salientaram, não o rigor, mas a honestidade de Dois Papas.

A Morte e o Inferno

31.12.2019


Vem e Vê.

O último boletim da URAP - União de Resistentes Antifascistas Portugueses inclui um artigo meu: “A Morte e o Inferno: Vem e Vê (1985)”, sobre o filme de guerra de Elem Klimov, obra-prima do cinema soviético. Está disponível aqui. Um agradecimento à Ana Pato, que dirige a publicação. O texto faz parte do espaço “Cultura é Resistência”. É!

Descobertas do Cinemático

09.12.2019


La Jetée (1962).

Mesmo em cima do fecho do ano, a Paralaxe: Revista de Estética e Filosofia da Arte, publicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, lançou um número constituído pelo dossier “Perspectivas Estéticas Entre Brasil e Kenya” e o meu artigo “Descobertas do Cinemático”. Deixo o resumo do meu ensaio:

Este artigo participa na discussão contemporânea em torno do conceito de cinemático, no âmbito da definição do cinema como forma artística. Rejeitando definições prescritivas da arte da imagem em movimento, e defendendo antes a importância fundamental da noção de descoberta no desenvolvimento dessa arte, este texto argumenta a favor da utilidade de um conceito aberto de cinemático.

2019

21.12.2019


Parasitas.

Tenho uma pequena lista de alguns que me escaparam, mas estes foram os filmes estreados em 2019 que ficaram na minha memória e que guardei para revisitar no futuro. Por ordem alfabética:

Booksmart: Inteligentes e Rebeldes (Booksmart), real. Olivia Wilde. EUA, 2019.
Bostofrio, real. Paulo Carneiro. Portugal, 2018.

Cafarnaum (Capharnaum), real. Nadine Labaki. Catar/Chipre/EUA/França/ Líbano, 2018.

Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, real. Renée Nader Messora e João Salaviza. Brasil/Portugal, 2018.

Cinzas Brancas Mais Puras, As (Jiang hu er nu), real. Zhang-ke Jia. França/ Japão/RPC, 2018.

Correio de Droga (The Mule), real. Clint Eastwood. EUA, 2018.

Dor e Glória (Dolor y gloria), real. Pedro Almodóvar. Espanha/França, 2019.

Glass, real. M. Night Shyamalan. EUA/RPC, 2019.

Joker, real. Todd Phillips. Canadá/EUA, 2019.

Nós (Us), real. Jordan Peele. EUA/RPC, 2019.

Parasitas (Gisaengchung), real. Bong Joon-ho. Coreia do Sul, 2019.

Santiago, Itália (Santiago, Italia), real. Nanni Moretti. Chile/França/Itália, 2018.

Variações, real. João Maia. Portugal, 2019.

Vitalina Varela, real. Pedro Costa. Portugal, 2019.

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O Irlandês (The Irishman), real. Martin Scorsese. EUA, 2019.

Linguagem para um Corpo Silencioso

09.12.2019


Moonlight.

A 18 de Dezembro de 2019, vou participar no Ciclo “Questões de Género”, organizado pelo Centro de Humanidades - Universidade Nova de Lisboa, na Biblioteca Palácio Galveias em Lisboa. Um agradecimento à Isabel Branco pelo convite. Partilho o painel “Sexualidade e Cinema” com a Ana Bela Morais (Universidade de Lisboa), com a comunicação “Linguagem para um Corpo Silencioso: Uma Leitura de Moonlight (2016) no Campo da Teologia Queer”. Eis o resumo:

Podemos ler Moonlight, realizado por Barry Jenkins, como uma obra cinematográfica que aborda de forma fértil a relação entre corpo, sexualidade e amor. Mais concretamente, o modo como a dimensão erótica do amor é corporizada e, assim, sentido teológico. O grande desafio que o filme coloca é o de fazer sentido de uma personagem, Chiron, que é representada em três períodos da sua vida: como criança (com o nome Little), como adolescente, e como adulto (com o nome Black). Só na adolescência é que ele é chamado pelo seu nome, Chiron, que é distinto das alcunhas pelas quais é conhecido na infância e na idade adulta que expressam a sua pequena estatura e o tom escuro da sua pele. É precisamente na adolescência que Chiron tem um encontro sexual e amoroso na praia que lhe deixa uma marca indelével. O corpo muda e permanece o mesmo e essa mudança e permanência são assinaladas pela linguagem. Estas são as bases da leitura de Moonlight aqui proposta, apoiando-se na aproximação que Eugene F. Rogers Jr. faz entre Tomás de Aquino e Judith Butler no campo da teologia queer, centrada na ideia de que um corpo exige uma linguagem. Esta comunicação propõe uma interpretação teológica em torno da comunhão amorosa que desenvolve uma linguagem crítica apropriada ao corpo silencioso de Little/Chiron/Black.

Sessões do Carvão — O Cinema Falado:
Les Magiciens de Wanzerbé (1949) + Farpões, Baldios (2017) / Marta Mateus

03.12.2019