O Espectáculo da Desintegração

24.07.2018


Playtime - Vida Moderna.

O grande cómico francês Jacques Tati foi um dos mais fecundos observadores do humano face às mecânicas que o ultrapassam na época moderna. O trajecto da sua célebre personagem, o senhor Hulot, é rumo à solidão: do labirinto social de As Férias do Senhor Hulot (Les Vacances de Monsieur Hulot, 1953) à ininteligibilidade do espaço em Playtime - Vida Moderna (Playtime, 1967), a humanidade aparece como elemento perturbador de uma ordem aparentemente sem origem. A comicidade das sequências é o resultado da irrisão e ampliação, dos gestos mais banais aos edifícios simétricos e assépticos, visando a dialéctica entre a individualidade e a colectividade através da saturação do real. Mas tudo permanece inconclusivo. Talvez por isso Serge Daney tenha afirmado que só Jacques Tati, depois de Buster Keaton, conseguiu fazer rir o maior número de pessoas com o espectáculo das coisas que se desintegram.

Playtime - Vida Moderna é uma obra de confronto directo com o espaço criado pela arquitectura moderna. A exclusão do adorno, o recurso à padronização, o esvaziamento dos volumes, os ângulos rectos, entre outros princípios formais, aparecem neste filme associados a um trabalho rigoroso e exaustivo de inventariação analítica do espaço criado por essa arquitectura. O cineasta, qual demiurgo, não recriou Paris: construiu uma representação complexa da capital francesa levada ao absurdo. Tal processo aproxima o labor detalhado de Tati do de um arquitecto que edifica um universo a partir dos contributos de Jacques Lagrange e Eugène Roman (cenários), Jean Badal e Andreas Winding (fotografia), Francis Lemarque (música), Jacques Maumont (som), e Gérard Pollicand (montagem).

No horizonte da densidade conceptual desta obra não estão conclusões. Playtime - Vida Moderna é um filme de situações e de questões que fixa a resistência ao entendimento como algo intrínseco ao espaço moderno, na sua inesperada linearidade, no mistério da sua funcionalidade. Daí também os equívocos gerados pelas suas características (como a transparência). O que é artisticamente mais significativo é o modo como concatenea o abstracto e o concreto — nas linhas horizontais e verticais, na composição visual geométrica e em extensão, na narrativa cumulativa — e gera um efeito de desnaturalização. No início do filme, à imagem do céu, espaço diluído e sem pontos de fuga, sobrepõe-se a imagem de um edifício, caixa ortogonal de metal e vidro. Imagem contra imagem. A paisagem construída nasce da colisão das dimensões arquitectónicas, plásticas, e narrativas. A estrutura livre do filme abre-se à experiência: cada espaço, cada pormenor, cada gesto, podem ser observados como puros elementos contrastantes. Face ao pouco êxito comercial da obra, que até aquela altura tinha sido a mais cara produção do cinema francês, o cineasta terá dito que esperava um pouco mais de atenção e de imaginação por parte dos espectadores. Porque Playtime - Vida Moderna molda também um espaço cultural constituído por miragens que emergem como símbolos do passado — como o reflexo numa porta de vidro do Arco do Triunfo e de outros monumentos que vai pontuando a acção como uma assombração.